Mas como se põe
o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades.
Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a
filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A
opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer
utilidade prática. É nomeada em público, mas - existirá realmente? Sua
existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.
A oposição se
traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo;
está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz
respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões
fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar,
através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática
ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com
elas.
A polêmica
torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia.
Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria
outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de
rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
E surgem os
detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e
totalmente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma
teologia falida. A insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a
filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e
outros.
Muitos políticos
vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e
funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente
usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem
sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante.
Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem,
menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Assim, a
filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência
dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de
considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só
apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de
poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um
nome literário - tudo isto proclama a anti-filosofia. E os homens não o
percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem
inconscientes de que a anti-filosofia é uma filosofia, embora pervertida, que,
se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.
O problema
crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer.
A filosofia é, portanto, perturbadora da paz.
E a verdade o
que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do
ser-verdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o
significado e substância da verdade única. Para nós, a verdade não é estática e
definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.
No mundo, a
verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo,
porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo
vê a verdade revelar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros
pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.
Quem se dedica à
filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele
faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus
concidadãos, do destino comum da humanidade.
Eis por que a
filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.
(Karl Jaspers,
Introdução ao pensamento filosófico, p. 138.)