"A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, vincula aos não educados as leis de convivência, de limpeza, de cortesia, de falar, de calar a tempo certo." Nietzsche

Nietzsche

" Não sei fazer diferença entre lágrimas e música, não sei imaginar a felicidade, o sul, sem um frêmito de temor.

Recostado na ponte, uma bela tarde,
Na noite escura, refletia.
Ao longe, uma canção;
No espelho das águas pululavam
Gotas de ouro reluzentes,
Gôndolas, luzes e músicas -
Ebriamente balouçavam no crepúsculo...

Diante disso, minha alma, como lira
Tocada por mão invisível, cantava
Em segredo, para si
Uma canção de gondoleiro,
Estremecendo de confusa ventura.
— Alguém escuta?..."



Nietzsche



Lamento de Ariadne


Quem me aquece, quem me ama ainda?
Dê a mim mãos ardentes!
Dê a mim um braseiro para o coração!

Estendida na terra, estremecendo-me,
como uma meio morta a quem se aquece os pés,
agitada, ai, por febres desconhecidas,
tremendo perante glaciais flechas agudas de arrepios,
caçada por você, pensamento!
Inominável! Escondido! Aterrador!
Você caçador entre as nuvens!
Fulminada na terra por você,
Olho sarcástico que me olha desde o escuro!
Assim estou jacente
dobrada, retorcida, atormentada
por todos os martírios eternos,
ferida,
por você, o mais cruel caçador,
seu desconhecido, deus…

Fira mais fundo!
Fira de novo!
Corte, recorte este coração!
Para que vem este martírio
com flechas de dentes redondos?
O que olha outra vez
sem se cansar do tormento humano
com malévolos olhos de raios divinos?
Não quer você matar,
somente martirizar, martirizar?
Para que martirizar a mim,
malévolo deus desconhecido?

Ah, ah!
Você se aproxima sinuoso
semelhante à meia-noite?...
O que quer?
Fale!
Aperte-me, oprima-me,
ah! já está muito próximo!
Ouça-me respirar,
espie meu coração,
ciumento!
— mas, ciumento de que?
Fora, fora!
para que a escada?
você quer subir
penetrar, até o coração,
subir até meus mais
secretos pensamentos?
Devasso! Desconhecido! Ladrão!
O que quer levar roubando?
O que quer levar escutando?
O que quer levar atormentando?
você, atormentador!
você, deus carrasco!
Ou como um cão devo
esfregar-me contra o chão diante de você?
Submissa, admirada fora de mim
balançar o rabo por amor?
É inútil!
Fira-me outra vez,
aguilhão o mais cruel!
Não sou seu cão, só sua presa,
caçador o mais cruel!
sua mais orgulhosa prisioneira,
bandido detrás das nuvens…
Fale afinal!
Você, escondido com o raio! Desconhecido! fale!
O que quer, salteador, de mim?...

Como?
Um resgate?
O que quer de resgate?
Você pede muito, aconselha-o meu orgulho!
E fala pouco, aconselha-o meu orgulho!

Ah, ah!
sou eu quem você quer? Eu?
eu inteira?
Ah, ah!
E me martiriza? Louco que você é, louco!
Re-martirize meu orgulho?
Dê a mim o amor, quem me aquece ainda?
quem me ama ainda?
dê a mim mãos ardentes,
dê a mim um braseiro para o coração,
dê a mim, à mais solitária,
à que o gelo, ai! sete camadas de gelo
ensinam a somar inimigos,
dê, sim, entregue,
inimigo o mais cruel,
dê a mim, a você!

Acabou-se!
Então fugiu ele,
meu único companheiro,
meu grande inimigo
meu deus carrasco!...
Não!
volte!
Com todos os seus martírios!
Todo o curso de minhas lágrimas
escorre até você,
e a última chama de meu coração
para você re-acende.
Oh, volte,
meu deus desconhecido! minha dor!
Minha última felicidade!...

Um raio. Dionísio aparece com esmeraldina beleza.


Sê prudente, Ariadne!...
Tu tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
Mete nelas uma palavra prudente! —
Não temos que odiar-nos primeiro, para podermos amarmo-nos?...
Eu sou o teu labirinto...



Imagem: Dionísio e Ariadne, de Antoine-Jean Gros (1821)
Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

charles Chaplin


Heinrich Heine





                                                                   O TÉDIO
                                                                           
 

Paciente: Venho doutor, fazer-lhe uma consulta.
A doença que me punge e esteriliza a mocidade e o espírito,
Resulta de uma chaga que nunca cicatriza.
Muito embora comum a toda gente, a de que sofro, atroz hipocondria,
Tanto me torna pensativo e doente, que já não sei o que é paz nem alegria...
Sendo o mais sábio clínico do mundo, sois também um filósofo notável, do Peito humano auscultador profundo, curareis este mal inexorável.
Que me destrói o organismo fibra-a-fibra
Que me enevoa o cérebro e o condensa.
Eu tenho um coração que já não vibra
Suporto uma cabeça que não pensa.
Este tédio mortal, tédio agoureiro,
Que me envenena, que me escurece os dias,
É como os beijos dado a dinheiro, numa noite de orgias.

Doutor: O amigo tem razão, padece realmente
Contudo a enfermidade, o morbus que o devora,
É um produto fatal do século de agora.
Uma emoção vibrante, um abalo violento, pode cura-lo
Creio. Apenas num momento. O tédio é uma sombria, uma
Fatal loucura. É a treva interior, a grande noite escura.
Onde se esquece tudo. A sorte, a vida amada.
O nosso próprio ser e só se lembra o nada.
  diga-me. Alguma vez amou?
Nunca em seu peito estrugiu das paixões o temporal desfeito ?
Como as vagas de um mar que se agita e encapela, ao soturno rumor do vento.
E da procela?

Paciente: Nunca.

Doutor: Pois meu caro. Procure a agitação constante.
Um prazer esquisito, um gozo triunfante.
Já visitou a Grécia, o Oriente a terra santa ?
Os sítios onde tudo hoje evoca e decanta, as glorias uma idade imorredoura
E eterna, que amesquinha e deslumbra a geração moderna ?

Paciente: Em híbridos festins passei a mocidade. Percorri viajando, o mundo
E a humanidade, como Judas da lenda.
E entre as mulheres todas, cujos lábios beijei
Em bacanais e bodas,
Mulher nenhuma eu vi sobre a terra tamanha
Que para mim não fosse uma visão estranha.
Como parti voltei. Sem achar lenitivo para este mal doutor.
Que assim me traz cativo.

Doutor: Frequente o circo, amigo. A figura brejeira do famoso Arlequim,
Que a esta cidade inteira palmas e aclamações constantemente arranca.
Talvez lhe restitua a gargalhada franca.

Paciente: Vejo doutor, que o meu caso é perdido.
O truão de que falas, o palhaço querido
Que anda no Coliseu assim tão aclamado, tem um riso
De morte, um riso mascarado, que encobre a dor sem fim
Do tédio e do cansaço... sou eu este Palhaço.