Ulisses foi prevenido por Circe, divindade que
transforma os homens em animais; ele lhe soube resistir e, em
compensação, ela lhe deu a força de resistir a outros poderes de
dissolução. Mas a sedução das sereias é assim mesmo forte demais.
Ninguém que ouça o seu canto pode escapar-lhe. A humanidade teve que
infligir-se terríveis violências até ser produzido o si-mesmo, o caráter
do homem idêntico, viril, dirigido para
fins, e algo disso se repete ainda em cada infância. O esforço para
manter firme o eu pretende-se ao eu em todos os seus estágios e a
tentação de perdê-lo sempre veio de par com a cega decisão de
conservá-lo. A embriaguez narcótica que faz expiar, com um sono
semelhante à morte, a euforia que suspende o si-mesmo, é uma das mais
antigas instituições sociais que fazem a mediação entre autoconservação e
auto-aniquilamento, uma tentativa do si-mesmo de sobreviver a si
próprio. A angústia de perder o si-mesmo e de suprimir com ele a
fronteira entre si próprio e a outra vida, o pavor perante morte e
destruição, irmana-se com uma promessa de felicidade que ameaçava a
civilização a cada momento. Seu caminho era o da obediência e do
trabalho, sobre o qual a satisfação reluzia permanentemente como mera
aparência, como beleza esvaziada de força. Inimigo tanto da própria
morte como da própria felicidade, o pensamento de Ulisses sabe disso.
Ele conhece apenas duas saídas possíveis. Uma ele prescreve a seus
companheiros. Ele lhes tapa as orelhas com cera e manda-os remar com
todas as forças que têm. Quem quiser subsistir não deverá dar ouvidos à
tentação do irrestituível e isso só poderá ser evitado caso não lhe for
possível escutá-la. Disso a sociedade sempre cuidou. Viçosos e
concentrados, os trabalhadores devem olhar para frente deixar de lado o
que estiver de lado. Eles devem sublimar o impulso que os pressiona ao
desvio, aferrando-se ao esforço suplementar. Assim eles se tornam
práticos. - A outra saída é a que é escolhida pelo próprio Ulisses, o
senhor de terras, que faz os outros trabalharem para si. Ele escuta,
porém privado de forças, atado ao mastro e, quanto maior se torna a
tentação, mais fortemente ele se faz acorrentar, da mesma maneira que,
em épocas posteriores, os burgueses recusarão a felicidade para si
mesmos, com tanto maior obstinação quanto mais a tenham ao seu alcance,
com o crescimento do seu poder. O escutado não tem consequências para
ele, que pode apenas acenar com a cabeça para que o soltem porém tarde
demais: os companheiros, que não podem escutar sabem apenas do perigo do
canto, não da sua beleza, e deixam-no atado ao mastro para salvar a ele
a si próprios. Eles reproduzem a vida do opressor ao mesmo tempo que a
sua própria vida e ele não pode mais fugir a seu papel social. Os
vínculos pelos quais ele é irrevogavelmente acorrentado à práxis ao
mesmo tempo guardam as sereias à distância da práxis: sua tentação é
neutralizada em puro objeto de contemplação, em arte. O acorrentado
assiste a um concerto escutando imóvel, como fará depois o público de um
concerto, e seu grito apaixonado pela libertação perde-se num aplauso.
Assim o prazer artístico e o trabalho manual se separam na despedida do
ante-mundo. A epopéia já contém a teoria correta. Os bens culturais
estão em exata correlação com o trabalho comandado e os dois se
fundamentam na inelutável coação à dominação social sobre a natureza.
Adorno e Horkheimer (A Dialética do Esclarecimento)